Um mês sem ele

Há exatamente dois meses atrás eu estava enterrando meu tio e há exatamente um mês atrás eu estava enterrando o meu pai. Muita gente tem perguntado como estou. Respondi tantas vezes essa pergunta que eu já estou até um tanto quanto de saco cheio, mas entendo que todos estejam preocupados. Resolvi escrever esse texto para contar como tem sido esses dias.

É bastante difundido os estágios do luto:

Primeiro estágio: negação e isolamento;

Segundo estágio: raiva;

Terceiro estágio: barganha;

Quarto estágio: depressão;

Quinto estágio: aceitação. 

À primeira vista, esses estágios parecem ser lineares, sendo um depois do outro, mas não é assim. Esses estágios são cíclicos, e é exatamente assim que tenho me sentido, às vezes está tudo bem, como se já tivesse aceitado tudo, cinco minutos depois eu estou do mesmo jeito de quando recebi a notícia que o quadro do pai era irreversível. Esses ciclos podem acontecer várias vezes durante o dia. Algumas poucas vezes aconteceu de eu acordar no meio da noite como se estivesse no meio de uma crise de ansiedade, como se a crise tivesse começado enquanto eu ainda estava dormindo.

Outra coisa com que tenho me deparado, é que a morte é uma coisa extremamente cara e burocrática. Só para enterrar o pai foi pouco mais de R$ 3.000,00. A burocracia para a minha mãe receber a pensão do pai também nos consumiu um bom tempo e energia. Já demos entrada no processo na marinha, mas depois de dar entrada, pode levar até 4 meses para começar e receber a pensão, até lá fica sem receber, mas quando sai é pago o retroativo. 

Meu pai passou 17 dias no hospital, seu estado piorou de forma muito rápida. Algumas pessoas perguntam como foi esse desenrolar do estado dele no hospital, então coloquei aqui no blog todos os boletins médicos que recebemos e repassamos para a família via linha de transmissão, basta clicar aí no link. No 2 de julho soubemos que o quadro era irreversível e que ele poderia morrer a qualquer instante, no dia 3 de julho ele faleceu e no dia 4 de julho foi enterrado. Olhando agora com uma certa distância, posso dizer que o dia mais difícil para mim foi o dia 2. Acho que agora posso dizer que esse foi o dia mais difícil da minha vida, mais até do que o dia em que ele faleceu e o dia seguinte quando foi enterrado.

Estamos tentando aprender a lidar com a ausência. A casa onde moramos foi pensada para ter muita gente e em um mês ela perdeu dois dos seus moradores. O vazio é imenso, nítido e palpável. A casa ficou muito mais silenciosa e isso também incomoda bastante. Já alteramos bastante coisa na casa para tentar dar outro clima. A posição de quase tudo na cozinha foi mudado. Em dois lugares da casa, onde tinham pregos para gaiolas de passarinho, agora tem plantinhas com suporte de macramê. O quartinho embaixo da escada onde meu pai guardava suas ferramentas e suas bugigangas passou por uma grande limpeza. A sala também teve seus móveis mudados de lugar. Ainda assim, é difícil não enxergá-lo em todos os cantos. Na sala, ele costumava ficar até tarde assistindo filme ou série, às vezes, quando eu também estava acordado, costuma ir até a sala para ver o que ele estava assistindo. Agora eu vou até a sala para tentar encontrar pelo menos um fantasma, mas não vejo nem isso. Só o vazio. Caminhando pela rua, todo senhor que vejo com idade próxima a dele eu tenho a impressão de vê-lo, pois era muito comum cruzar com ele pelas ruas do bairro. Na mesa do meu computador ainda estão o boné que ele costumava usar e o livro que ele deixou marcado. Ainda não sei o que fazer com isso.

Plantinha com suporte de macramê

Tem crescido o movimento da terceira dose da vacina. Eu pergunto às pessoas se elas estão acompanhando isso para ver a opinião delas. A verdade é que eu fico pensando se foi isso que faltou para salvar o meu pai. É um fato que ainda não sabemos tudo sobre a COVID, os casos como o do meu pai que desenvolveu um quadro grave mesmo tendo tomado as duas doses é um exemplo claro disso. Em sua certidão de óbito, na causa da morte consta: choque séptico, pneumonia, infecção por coronavírus e tromboembolismo pulmonar. Tudo “orquestrado” pela maldita COVID.

Tenho saudade de suas histórias de marinheiro. Lembro dele contando que uma vez um raio acertou o navio e toda a comunicação do navio foi queimada, os telefones ficaram carbonizados. Outra história que ele vivia contando, de uma máquina de lavar industrial que tinha sido instalada, mas a máquina não tinha trava de segurança, quando abria a tampa para colocar roupa, ela não parava de funcionar, meu pai fez uma comunicação oficial ao comandante relatando o risco da máquina, mas não obteve resposta. Um dia um marinheiro foi colocar um lençol que já estava um pouco molhado, a máquina sugou o lençol junto com o braço do marinheiro. Tinha também relatos de quando iam içar alguma carga muito pesada para o navio usando cabos de aço, às vezes um cabo se rompia e produzia um efeito chicote descontrolado e alguns marinheiros chegavam a se jogar no mar para não serem acertados pelo cabo. Um cabo de aço sob pressão quando se solta tem força suficiente para amassar o casco de um navio, imagine o que aconteceria se acertasse uma pessoa. Dentre todas essas histórias, a minha preferida era de uma vez em que ele estava embarcado e a noite o mar estava furiosíssimo, todos os marinheiros se trancaram no navio esperando o mar se acalmar. No dia seguinte pela manhã, perceberam que o mar tinha arrancado o carretel de aço onde ficava enrolada a corrente da âncora. O carretel, a corrente e a própria âncora nunca foram encontrados.

Outra programação que fazíamos muito quando morávamos no Henrique Jorge era ir e voltar a pé na feira dos pássaros, também conhecida como feira da parangaba. Ali ele me ensinava as malacas e as malícias dos feirantes. Ir na feira com ele era uma verdadeira escola da vida. Ele adorava feiras de rua, era uma das coisas que ele mais sentia falta durante o isolamento. Eu daria qualquer coisa para ter esse momento com ele de novo. Dói demais saber que nunca mais vou ouvir suas histórias, andar com ele e aprender com ele. 

Em um mês eu escrevi 4 textos, todos relacionados a dor que venho sentindo, vou colocar aqui os links caso alguém queira lê-los:

Encarnacionalidade;

Irreversibilidade;

Reflexibilidade;

Picolé de tristeza.

Desses 4, 3 são poemas. O curioso é que eu nunca gostei muito de poemas, mas de algum modo veio esses versos. É algo estranho até pra mim que escrevi, é quase como se eu nem tivesse controle. Meio que nem escrevi, só botei para fora mesmo.

Esse mês de agosto será especialmente difícil. É o primeiro dia dos pais sem ele, como se não bastasse, é também o mês de aniversário dele e do Neto. Não sei como vai ser.

6 Comments

  1. Que texto lindo e forte e ao mesmo tempo tão triste… Não sei o que falar, só desejar que você tenha forças para enfrentar tudo isso. 😢😘

  2. Felipe belo texto ,
    Espero que passe por isso , por esse mix de sentimentos o mais rápido possível , e que fique nas lembranças sempre as belas histórias vividas ao lado desse velho marinheiro .força primo !!

  3. Felipe, belo texto .
    Tomara que passe logo esse mix de sentimentos que está sentindo .
    E que fiquem sempre os pensamentos bons e alegres que passou ao lado desse velho marinheiro .
    Força primo !

  4. Tudo bem ? Sei vem um grande desafio para vocês este domingo .
    Porém ressignificar é a palavra chave
    Ser grato por todos os outros dias na presença 🙏
    Não cabe mais por quê.
    Aconteceu …..FATO e nós ficamos ,ficamos aqui e precisamos continuar .
    Cada ser tem sua vida própria então eu te parabenizo hoje ,pelo resto de sua vida 😉, olhe fora da janela um pouco e veja que incrível … Você está aqui ! E sou grata por ter vocês em minha vida .
    Bjssss 😘 a todos
    Rose Cruz

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *