Saudosismo

Outro dia passei em frente a igreja que fiz a crisma na adolescência. Eu sei, é estranho, mas eu fiz todos os ritos da igreja católica, batismo, 1° comunhão e crisma. Quando entrei na crisma, eu já tinha certeza de que era gay, mas até então só tinha beijado um garoto ou outro, ainda não tinha iniciado a minha vida sexual. Eu fui para a crisma pelo convívio social e acredite ou não, era uma chance a mais de pegar alguém. Afinal, estamos falando de um período em que a internet ainda era muito escassa na casa dos brasileiros.

As gays nascidas até a primeira metade da década de 90 viveram a adolescência com pouquíssimo ou nenhum acesso a internet. Uma adolescência vivida totalmente conectada à internet é totalmente diferente de uma adolescência com pouco acesso a internet e por sua vez é totalmente diferente de uma adolescência totalmente sem internet. Smartphones então nem se fala, quando os celulares inteligentes se popularizaram eu já era um jovem adulto. O impacto disso em como as pessoas vivem sua sexualidade é enorme. Hoje em dia é muito fácil saber se uma pessoa é gay. É só procurar ela nas redes sociais ou nos aplicativos de pegação. Isso sem falar que hoje em dia as pessoas saem do armário muito mais cedo, na minha época era muito mais complicado. 

Foi uma escolha muito acertada ter feito a crisma. Eu tinha 15 anos na época, idade maravilhosa para fazer novos amigos e de fato fiz amigos excelentes lá, de quebra ainda fiquei com dois boyzinhos no banheiro da paróquia. Um deles foi só uns beijos bem qualquer coisa e só rolou uma vez, mas o outro, é até difícil para mim falar dele sem encher os olhos d’água. O nome dele era Joaquim. Era alto, muito magro, cabelo liso muito escuro, pele clara, mãos enormes e ossudas, olhos fundos e com um castanho tão escuro que jamais encontrei na vida. Tocava violão muito bem. Gostava de rock. Tinha a mesma idade que eu. Quase sempre vestia blusas pretas esfarrapadas e usava lápis nos olhos. Beijava divinamente bem. No decorrer do ano da crisma nos pegamos várias vezes no banheiro. Logo ele se tornou a minha maior motivação para ir para a crisma. Lembro de uma vez que estávamos nos pegando e senti o pau dele duro roçando na minha coxa, parecia ser enorme, mas nunca tive a oportunidade de ver o pau dele fora da calça.

Mais ou menos no meio do ano da crisma ele entrou em uma discussão com uma das orientadoras da crisma, ele insistiu, argumentou e bateu o pé dizendo que Deus e o Diabo eram a mesma pessoa. A orientadora chegou em um ponto que não sabia mais o que responder ou o que fazer, falou que se ele acreditava naquilo, então aquele ambiente ali era para ele, que era melhor ele se retirar e não precisava mais voltar. Foi exatamente o que ele fez, se levantou e foi embora para nunca mais pisar ali. Depois que ele foi embora eu só permaneci até completar a crisma por insistência da minha mãe.

Naquela época eu tinha um celular (que passava longe de ser um smartphone), mas o Joaquim não. Eu tinha o número do telefone fixo da casa dele. Nos falávamos de vez em quando. Sempre era eu que ligava, isso me magoava na época, mas ele sempre falava comigo de forma muito amorosa quando eu ligava e conversávamos muito, por isso eu continuava ligando. Só não ligava com mais frequência porque na época ligações de celular custavam muito mais caro do que custam hoje. Às vezes nos encontrávamos na praça em frente a igreja da crisma onde nos conhecemos. O beijo dele era maravilhoso, mas às vezes a gente nem se beijava, apenas ficávamos conversando horas e horas. 

Ele chegou a ir na minha casa algumas vezes, mas ele sequer me falava onde morava. Um dia ele me chamou para conhecer a casa dele. Foi um choque para mim. Foi a primeira vez que entrei em uma favela. Descobri que a sua condição física muito magra não era efeito dos hormônios da adolescência, as blusas esfarrapadas não eram estilo e o telefone da sua casa na verdade era um telefone público bem na frente da casa dele. Conheci seu pai, sua mãe e seus dois irmãos mais novos. O pai dele me encarou de uma forma aterradora. É provável que ele desconfiasse ou já soubesse que o filho dele beijava homens e provavelmente não gostava nenhum pouco disso.

Quando completamos 16 anos, tínhamos um grupo de amigos na praça da igreja, de vez em quando nos encontrávamos lá para beber escondidos. Sempre bebidas baratas, compradas com os trocados que juntávamos. Joaquim começou a beber todo dia. Em pouco tempo já estava claramente em um quadro de alcoolismo.  Nossos encontros foram ficando cada vez mais escassos. Quando ligava quase nunca ele estava em casa. Aos 17 anos ele começou a passar vários dias fora de casa. Ninguém sabia pra onde ele ia ou o que fazia, quando perguntávamos ele se esquivava. Depois de um tempo, percebendo que ele não gostava de dar satisfação, parei de perguntar sobre esses sumiços. Quando nos encontrávamos, a conversa ainda era muito boa, mas já não nos beijávamos mais.

Quando fiz 18 anos, Joaquim me deu o livro Diário de um mago do Paulo Coelho, com uma dedicatória na contra capa, sua assinatura era belíssima. Pouco depois do meu aniversário, chegou a notícia de que ele estava muito doente, internado, com problemas no fígado, mas ninguém sabia dar a informação correta e ninguém tinha coragem de ir até a casa dele perguntar aos pais dele. Eu não achava que a história dele ia acabar como acabou. Quando se tem 18 anos a gente não entende direito o que é a morte. A gente acha que pessoas com 18 anos são invencíveis, impossíveis de morrer, mas a verdade é que para morrer basta estar vivo. Joaquim morreu de cirrose aos 18 anos de idade. 

Olhando agora em retrospecto, acho que Joaquim foi a minha primeira paixão, ou talvez o primeiro amor. Talvez o primeiro que de algum modo tenha sido correspondido pelo menos. Não sei ao certo. Sinto muita saudade dele. Hoje tenho 30 anos e ainda lembro do beijo dele, do volume do pau dele roçando na minha coxa e dos olhos fundos e escuros feito buracos negros. Tanta coisa que ele poderia viver, tanta coisa que ele poderia ser. Talvez ele fosse músico hoje em dia, poeta, filósofo ou algum outro tipo de pensador. Não sei se ele chegou a explorar sua sexualidade. Queria muito ter tido a chance de transar com ele, mas talvez esse seja um pensamento egoísta meu. Nós não temos fotos juntos. Toda lembrança que tenho dele é o livro que ele me deu, com a assinatura dele na dedicatória. Gosto de pensar que ele foi pessoalmente questionar a Deus se ele e o Diabo são a mesma pessoa.

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