Sangue Seco

04 de junho de 2021

4:10 – Acordo para ir ao banheiro, ao voltar para a rede não consigo mais dormir. Por volta das 6hs decido me levantar e vou para o PC.

06:18 – Minha mãe me liga, assustada, chorosa, nervosa, diz que “acha que o Neto faleceu” (A saber, Francisco Antonio Neto, 66 anos, meu tio, irmão da minha mãe) e então pede para que eu vá para casa. Arrumo minhas coisas, chamo o uber e saio da casa da minha namorada por volta das 6:39. 

Aproximadamente 7:00 – Chego em casa. Meus pais estavam pra lá e pra cá alvoroçados, não lembro ao certo o que eles faziam ou estavam tentando fazer. Vou em direção ao quarto da minha vó, onde meu tio dormia junto com ela. Tentarei descrever a cena.

No quarto há duas camas de solteiro, uma encostada paralelamente à parede do lado oposto à porta, onde dorme a minha vó. A segunda fica encostada paralelamente à parede mais próxima da porta. Onde dormia o meu tio. Minha vó estava na sua cadeira de rodas, mais ou menos no centro do quarto, virado para o corpo do meu tio. Chorando e repetindo sem parar “Oh meu Deus”. O corpo do meu tio encontrava-se arreado na grade da cabeceira da cama, quase que suspenso, de forma que a parte superior do tronco encontrava-se na cama, com o rosto virado para a parede, e a parte inferior estava fora da cama. Estava semi nu, com a fralda geriátrica arriada até os joelhos. Era possível ver que ao redor da cabeça, no colchão, havia algo que parecia ser uma mistura de vômito e sangue, mas já seco. O cheiro era estranho, não parecia com nada que eu conhecia. Os dedos dos pés e das mãos muito roxos e em posições bizarras. Cheguei a tocar nos seus dedos da sua mão direita, estavam gelados e engelhados. 

Abracei minha vó de modo que meu corpo cobrisse a visão dela do corpo do meu tio. Ela falou várias vezes que ele era a companhia que ela tinha. Que quando ela viu ele daquele jeito já sabia que ele estava morto. Falei para sairmos do quarto, mas ela só me ignorou. Continuei abraçando até que chegasse mais alguém. As primeiras pessoas que chegaram foram minha Tia Helena e sua filha, Cibele. A primeira reação ao entrarem no quarto foi começar a chorar. Depois de alguns minutos, Cibele foi até a vó, para convencê-la de sair do quarto. Ela se convenceu. 

Aproximadamente 7:30 – Chega a equipe da funerária. Analisa o corpo. Fala que como tem sangue não podem fazer nada, é preciso contactar a SVO (Serviço de Verificação de Óbito) para analisar e liberar o corpo. 

Aproximadamente 8:30 – A equipe da SVO chega, entra no quarto e avisa que para que a análise seja feita, será necessário mudar a posição do corpo, então fecham a porta do quarto. Ao abrirem a porta, o corpo estava deitado na capa, agora era possível ver que os olhos e a boca estavam semi abertos. A equipe da SVO havia coletado o material para o teste de COVID. Após várias perguntas feitas à família, avisam que há suspeita de COVID. A equipe da funerária, que estava até então esperando, avisa que não pode mexer no corpo em caso de suspeita de COVID. Acionam outra equipe, responsável por lidar com essa situação. 

Aproximadamente 10:10 – A outra equipe da funerária chega. Tira o caixão do carro funerário e entra com ele na casa. O caixão é posicionado no corredor. A equipe da funerária entra no quarto, o corpo é retirado já dentro de um saco e acomodado dentro do caixão. Por fim, o saco e o caixão são lacrados. Essa é a última lembrança que tenho do meu tio. 

10:35 – O caixão é colocado no carro funerário e é levado.

Em uma manhã tudo acabou. Fui dormir na quinta do dia 3 e tudo estava normal, antes do almoço do dia 4 ele já estava dentro de um caixão. Meu tio tinha um pesado histórico de transtornos psicológicos, depressão, síndrome do pânico e esquizofrenia. Além de um extenso histórico de asma. Se aposentou por invalidez, nunca casou e possuía uma estranha e muitas vezes bizarra dependência emocional com a minha avó, hoje com 96 anos, que apesar de ter um corpo muito frágil por conta da idade, é assustadoramente lúcida. 

Dizer que a convivência com ele era difícil chegar a ser eufemismo. Já existe inclusive um texto aqui no blog sobre ele. Quem ainda não leu, aconselho que leia. Funcionará como um texto complementar a esse, para que entendam a complexidade do caso dele. 

Acho que a última lembrança boa que tenho dele deve ter uns 10 anos, talvez mais. Desde então as lembranças todas são muito penosas, sofridas e angustiantes. Eu sempre costumo dizer, quem cuida de alguém com problemas mentais, sempre chega um momento que o sujeito fica com vontade de internar a si mesmo, e não a pessoa que tem o transtorno, porque deixa qualquer um doido. 

Das lembranças boas do passado, as mais marcantes com certeza são envolvendo músicas. Meu tio Neto, quando ainda tinha alguma independência e saúde, comprava muitos CDs, seu maior hobby era a música, era muito conhecedor de música. Lembro várias vezes de estar tocando uma música no rádio, pegar o rádio, sair correndo com ele na mão e perguntar ao Neto que música era aquela que estava tocando. Ele dizia o nome da música, de quem era a música e às vezes o ano que tinha sido lançado. Era o meu Shazam da época. Por influência dele, tive contato com uma infinidade de músicas que de outra forma jamais saberia que elas existiam. Ano passado assisti um filme chamado Mamma Mia!, de 2008. Esse filme é um musical que usa apenas músicas da banda ABBA. Eu conhecia todas as músicas que tocaram no filme, me marcou profundamente, e isso tudo graças à bagagem musical que adquiri por causa dele. Essa é com certeza a maior herança que ele me deixou.

One Comment

  1. As pessoas pode até ser substituíveis, como certa frase diz, contudo sempre deixa sua marca . A morte é sempre dolorosa mas é lindo saber que diante de toda sua narrativa , tendo o seu lado triste , você conseguiu mostrar, que ficam lembranças lindas e que marcam nossas vidas. E São essas que serão sempre contadas, fazendo que , apesar da morte, na nossa mente ela sempre permanecerá viva.

    Lindo o texto parabéns!!!
    Bjusss.

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