Robôs e equidade de gênero

Durante o período da minha graduação. Tive a oportunidade de trabalhar com robótica educativa. Participei de um projeto de pesquisa na área e cheguei a fazer alguns trabalhos como freelancer para uma empresa especializada no ensino de programação para estudantes do ensino fundamental I e II. Chamaremos essa empresa de Stark School. A Stark School possui parcerias com alguns colégios de Fortaleza, ofertando seus cursos dentro das instalações desses colégios, além de ter um espaço próprio para alguns cursos também. Uma das estratégias para conquistar novos alunos consistia em fazer pequenas feiras na hora do recreio das escolas. Em 2016 pude participar de algumas dessas feiras como instrutor e é sobre isso que quero falar hoje.

Essas feiras consistiam em mostrar alguns projetos de tecnologia desenvolvidos nos cursos de programação, como carrinhos controlados por smartphone via bluetooth, maquetes de casas inteligentes e maquetes de cidades inteligentes. Mas a coisa que chamava mais atenção nessas feiras eram os projetos feitos com os kits de robótica da Lego, especificamente um deles acabava sempre sendo a grande estrela da feira, pelo menos pra garotada. O Mindstorm EV3 da Lego.

(fonte: www.lego.com)

A série Midstorms da Lego foi criada para ser um brinquedo educativo com o intuito de ensinar conceitos de programação e robótica. O manual  que está incluso no kit ensina a montar 5 robôs diferentes com as peças que vêm na caixa, mas obviamente existem vários vídeos da internet com pessoas montando coisas que vão muito além do manual, muitas vezes usando peças de mais de uma caixa pra isso. Fora do Brasil o kit é vendido com o preço de $ 349,99. No Brasil é possível encontrá-lo com o preço variando entre R$ 2.000,00 e R$ 3.000,00. Para a maioria das crianças do nosso país esse brinquedo não chega sequer a ser um sonho, porque no geral a maioria das crianças não vai ter acesso sequer ao conhecimento da existência desse brinquedo, o que dirá ao brinquedo em si.

Aqui um vídeo que mostra um pouco das possibilidades desse kit:

A montagem mais famosa desse kit é esse robô bípede com pés de esteira que vem estampando a caixa e era essa montagem que era usado nas mini feiras da Stark School:

(fonte: www.lego.com)

Você adulto que está lendo esse texto, eu tenho certeza de que você adoraria poder brincar com um desses. É besteira querer bancar o durão, é impossível se manter totalmente adulto na frente de um desses. Se isso mexe até com a cabeça de um adulto, faça o exercício de imaginar o impacto que isso tem na cabeça de uma criança. Tente se imaginar como criança e se deparar com um brinquedo desses na hora do recreio. Imaginou? Pois é, era isso que acontecia nas mini feiras da Stark School.

As crianças não eram avisadas do que aconteceria, quando o sinal do recreio tocava e tão logo todas saiam de suas salas, bastava 10 segundos para que elas entrassem no espaço onde estavam expostos os projetos e notassem o Mindstorm. A reação era sempre a mesma, corriam pra cima dele como uma avalanche. Cada um deles com uma expressão de maravilhamento e não raro dava pra notar alguns quase infartando. Mas no meu primeiro dia como instrutor acompanhando essa exposição, bastou 5 minutos pra eu perceber algo estranho. Toda essa avalanche em cima do robô era composta só por meninos.

O meu primeiro dia era um turno completo, manhã e tarde. A manhã foi de constatações. A primeira delas, só os meninos se aproximavam e se apropriavam da brincadeira. Perguntavam, mexiam e pediam o controle. As meninas ficavam de longe olhando, às vezes em grupo, às vezes sozinhas. Quando passei o controle para um dos meninos, veio a segunda constatação. Quando um outro menino vinha pedir o controle, ele resistia um pouco mas depois sedia, quando uma menina vinha pedir o controle, era completamente ignorada, como se não houvesse ninguém falando. Então ela se cansava e ia embora, mas bastava outro menino pedir o controle pra ele ceder. Não é preciso ser militante pra perceber que tinha algo errado, e pra quem é militante e está lendo esse texto todas os sinais de alerta já acenderam. Mas antes de começarmos a falar de machismo e/ou feminismo, por favor queira me acompanhar até o próximo parágrafo. Ainda falta a terceira e última constatação pra falar.

O golpe final veio naquele dia a tarde. Já entendendo que eu precisava intervir, comecei a propositalmente pedir o controle com a desculpa de que “o tio precisava ajeitar uma coisa no brinquedo”, fingia mexer em algo, então passava o controle para uma das meninas que tinham pedido para um dos meninos mas ele não tinha passado. Depois comecei a notar algumas meninas que ficavam mais distante assistindo a brincadeira com o robô, mas que em momento algum se aproximavam para pedir o controle. Então peguei o controle de novo e fui até uma dessas meninas que estavam mais distante e ofereci o controle. Ela por sua vez perguntou em um tom quase de susto “eu posso brincar também?”. Vocês já entenderam né? Essa pergunta traz a terceira constatação. Com aquela idade já tinha se formado na cabeça dela a ideia de que esse tipo de brincadeira não é pra ela, “porque não é para meninas”. A menina que perguntou isso era do fundamental I, não devia ter nem 10 anos. A escola em questão é uma das mais famosas de Fortaleza. Com essa criança o desequilíbrio da balança entre os gêneros já tinha chegado e já estava enraizado. Ela não se permitia sequer chegar perto da brincadeira com o robô, embora quisesse muito brincar. Se a pauta de equidade entre os gêneros realmente pudesse habitar as escolas, teria que ter chegado antes do fundamental I para que não houvesse uma situação como a que estou narrando.

Isso foi só o primeiro dia na primeira escola. E sim, isso se repetiu em TODAS as escolas que fui naquele período. Devo ter trabalhado como instrutor nessa mini feira promovida pela Stark School em umas 10 escolas diferentes. Em todas elas essas questões se repetiam. Meninos passavam o controle pros meninos mas não pras meninas e várias meninas se mostravam interessadas nos projetos de robótica, mas não se sentiam seguras para se aproximar e se apropriar da brincadeira como os meninos se sentiam. 

Já faz alguns anos que venho digerindo o quanto a minha masculinidade foi formada do jeito errado. De uns tempos pra cá venho tentando me concentrar no que seria um modelo saudável de masculinidade, mas infelizmente tem sido difícil. Nossa sociedade passou praticamente toda a sua existência produzindo conteúdo que reforçam os modelos de masculinidade tóxica. Quando você procura algo sobre o que seria uma masculinidade saudável, que ensinasse, por exemplo, um menino do fundamental a tratar as meninas com igualdade e respeito, esse tipo de coisa nem existe. Um menino do fundamental tem medo de passar o controle para um menina do fundamental, alguma semelhança com a vida adulta será coincidência? Creio que não. Existe um modelo de masculinidade saudável pra ensinar pra essas crianças? Eu queria poder dizer que existe sim um caminho muito bem pavimentado que pudesse ser passado, mas eu não acredito nisso, pelo menos não ainda. O que eu sei é que a equidade de gênero não vai chegar de forma passiva.

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