No dia 04 de junho deste ano eu perdi um tio, assunto já tratado aqui neste blog. No dia 16 de junho meu pai se internou com COVID. Também já tem texto por aqui contando das angústias relacionadas ao meu pai estar na UTI. Agora retorno novamente aqui para falar mais uma vez de luto, no dia 03 de julho de 2021 meu pai fez sua passagem. No dia seguinte, 04 de julho, exatamente 1 mês após enterrar meu tio, eu estava enterrando meu pai.
É difícil de aceitar. É difícil de acreditar. Ambos tinham tomado as duas doses da vacina. Ambos tomaram coronavac. Pelo menos na teoria, ambos não deveriam ter morrido de COVID. Eu sou super defensor de que é preciso vacinar todo mundo independente da vacina. Mas a desconfiança da coronavac tem ficado muito palpável. E palpável nesse contexto significa morrer.
Meu pai teve uma Trombo Embolia Pulmonar (TEP) em decorrência da COVID e era diabético e hipertenso. Estava lentamente galgando uma melhora, quando teve uma infecção bacteriana no pulmão. Foi demais para o corpo dele. TEP + Diabetes + Hipertensão + Infecção bacteriana, dificilmente essa equação terá um resultado diferente da morte.
Na sexta feira, dia 02/07, recebi a ligação do hospital que passa o boletim de como o pai estava. Eu atendi e disse que ia chamar a minha mãe. Até então ouvíamos o boletim juntos, ouvindo no viva voz. O médico disse que precisava falar primeiro comigo. Explicou que o meu pai teve duas paradas cardíacas pela manhã, estava usando 100% de oxigênio e os rins não estavam respondendo. Ele estava autorizado a fazer hemodiálise, mas na atual situação era muito arriscado. A família estava autorizada a visitá-lo na UTI, pois ele já não tinha mais chances de voltar e ele poderia falecer a qualquer momento. O médico me perguntou se achava melhor eu mesmo repassar para minha mãe ou se ele mesmo explicaria tudo a ela. Eu pedi que ele falasse com ela. Minha namorada estava comigo na hora, entreguei o celular para ela para que levasse até minha mãe. Deitei na minha cama, enfiei a cabeça no travesseiro e chorei como nunca chorei antes em toda minha vida.
Neste mesmo dia à tarde, várias pessoas da família foram para o hospital. Eu e minha irmã Vitória entramos na UTI para vê-lo. Ele estava em coma induzido, totalmente apagado, bem mais magro, a barba crescida, e uma expressão que eu nunca vou esquecer. Estava muito diferente. E visivelmente… morrendo. Segurei a mão direita dele e a Vitória segurou sua mão esquerda. Falei em voz alta, na esperança que seu subconsciente ouvisse. Falei que tinha muita gente orando por ele, que ele é uma pessoa muito querida, que ele fazia muita falta em casa, que eu amava muito ele e pedi para que ele voltasse pra gente, pedi para que ele lutasse para sair dessa. Eu e a Vitória saímos da UTI em estado de choque. A médica que estava de plantão na UTI conversou com toda a família. Explicou que o quadro dele era irreversível. O tratamento estava sendo mantido, mas não com o objetivo de que ele melhorasse, e sim que ele fizesse sua partida no momento dele com o mínimo de dor possível.
Estávamos esperando que o hospital ligasse durante a madrugada de sexta para sábado, avisando que ele tinha falecido. A ligação não veio. No sábado, por volta das 14hs, o médico ligou para dar o boletim. Ele explicou que o quadro estava ainda mais agravado e que o meu pai não passaria daquele dia, caso a família quisesse, poderia novamente visitá-lo na UTI. Eu fui de novo, acompanhado da minha namorada (Jaiana), meu primo (Toninho) e a esposa dele (Fran). Entrei na UTI, segurei novamente sua mão direita, ele estava ainda mais debilitado do que no dia anterior. Eu disse a ele que já tinha entendido que a hora dele tinha chegado, que ele já poderia partir que nós ficaríamos bem. Disse que o amava muito e que um dia queria ser como ele. Saímos do hospital por volta das 16:30 e fomos para casa do meu outro primo, o Daniel. Eu quis ir para lá porque queria que eles estivessem comigo quando a notícia chegasse. Também porque eu não tinha forças para estar perto da minha mãe quando ela soubesse. Por volta das 17:30 o hospital me ligou. Todos entenderam. Eu agradeço muito ao Toninho, a Jaiana, a Fran, o Daniel e o Filipe por terem dividido o impacto desse momento comigo.
Toda vez que lembro que nunca mais vou ver o meu pai, sinto como se fosse explodir de tanta angústia. É muito difícil pôr em palavras a dor que tenho sentido. Eu achava que queria morrer também, pensava que essa dor tão grande era a dor de quem queria morrer também, de quem queria pôr logo um fim a si mesmo, mas embora racionalmente eu pensasse isso, meu coração me dizia que não era isso, mas minha cabeça não estava sabendo racionalizar o que o coração dizia. Acho que a epifania do que é essa dor veio hoje a tarde. Eu não quero morrer. Na verdade eu já morri. Morri um pouco quando o meu pai morreu. Essa é a dor de quem perde alguém que se ama, um pedaço da gente morre também, mas não o suficiente para morrer por completo, morre só um pouco, só o suficiente para sentir a dor da morte e continuar vivendo.
A luta aqui em casa agora tem sido para tirar as coisas dele. Algumas coisas precisam sair imediatamente, pois dava a sensação de que ele ainda estava entre nós, como se ele fosse chegar a qualquer momento. A espreguiçadeira, já foi levada. Estamos doando agora os passarinhos e as várias gaiolas. O copo do Fortaleza onde ele bebia sua pinga vai ser o próximo item a ser dado um destino. Hoje a Jaiana tirou 52 pregos espalhados pelas paredes da casa que ele usava para pendurar as gaiolas. Nesse momento eu escrevo esse texto olhando para o livro que ele estava lendo, ainda marcado com um canhoto de jogo do bicho onde ele parou a leitura antes de adoecer. A coragem para desmarcar o livro ainda não veio, vou deixar assim por enquanto.
Meu pai era aposentado da marinha e era a pessoa mais desenrolada que eu conheço, acho que por conta da educação militar. Sabia fazer de tudo e era completamente auto suficiente. Cortava o próprio cabelo, costurava as próprias roupas e consertava todos os equipamentos eletrônicos da casa que quebravam. Aliás, a casa onde moramos hoje, pelo menos 75% dela foi ele que construiu sozinho. O comecinho foi feito por um pedreiro, ele ficava de servente e aprendeu tudo que o pedreiro fazia só observando. Quando ele assumiu a obra, na maioria das vezes não usava nem servente que era pra economizar o dinheiro. Eu costumo dizer que se um dia ele se perdesse no meio de uma selva, quando o encontrassem ele já teria fundado uma cidade, estaria casado e com dois filhos. Como se não bastasse, cozinha divinamente bem, embora muitas vezes tivesse muita preguiça de ir para o fogão.
As habilidades sociais do meu pai são uma lenda à parte. Cheguei a dizer para a mãe que quando ele saísse do hospital ele já teria feito amizade até com o recepcionista (o que não faria sentido tendo em vista que ele estava internado, mas é o tipo de coisa que de algum modo ele conseguiria fazer). Sempre muito animado e sempre muito festivo. Adorava cachaça e um bom tira gosto. Não gostava muito de cerveja, mas se tivesse tava tomando também. Fez amigos de copo literalmente no país inteiro. Conheceu quase todos os estados do Brasil e ainda passou um tempo na Argentina. No fim de semana era o boêmio clássico. Um verdadeiro bon vivant. Meu pai gostava de viver. Tinha tesão por viver. Dói saber que ele se foi com 66 anos. Ele ainda tinha muita vela para queimar.
Não vou cair na armadilha de tentar dizer tudo o que o meu pai significa para mim em um único texto, o objetivo aqui não é esse. Como já falei algumas vezes em outros textos aqui no blog, escrever para mim é uma atividade terapêutica. Embora tenha sido muito doloroso escrever esse texto, eu consigo me sentir mais leve agora. Meu pai agora é uma lenda e embora ele já tenha partido, essa lenda continua viva.
Essa homenagem carrega muito afeto! É uma presença intensa, firme em sinceras palavras. Nas perdas, sempre lembro de Lya Luft “a melhor forma de homenagear quem se foi é viver como ele gostaria que vivêssemos. Bem, integralmente, saudavelmente. Com alegrias possíveis e projetos até impossíveis”. Mais uma vez, sinta-se abraçado nessa dor.
Roger Medeiros
Muita força pra ti e pra toda a tua família,amigo!
Que lindo! O seu pai vive em você.
Eu só o vi uma vez. Mas consigo ver tudo que vc escreveu dele, principalmente a parte dele ser simpático e ser alguém muito fácil de conversar. Sinto muito. Muito mesmo. Eu não tenho palavras que irão te consolar. Espero que o tempo faça isso. Amo você Felipe… Você tem muito dele… Espero te ver em breve pra eu te dar um abraço apertado… Até logo.
Felipe, parabéns pelo belíssimo texto. Muito obrigado por compartilhar comigo. Tenho um conceito bem peculiar sobre o que significa conhecer alguém e, teoricamente, eu não diria que o conheci, pois não sei o nome dele (se você mencionou no texto, eu não notei, perdoe-me) e nunca falei com ele. Sim, conhecer para mim é saber o nome, ter dito o meu nome e ter conversado, pelo menos uma vez, com essa pessoa. Por esses critérios, não conheci seu pai. Contudo, seu texto combinado com minha fértil imaginação e capacidade de abstração me fizeram conhecê-lo de outra forma que eu sequer imaginaria. Fique bem e seja grato pela vida que ele teve, pela vida que ele te proporcionou e por ter conseguido se despedir dele. Nem todos conseguem…
Cara seu pai era o verdadeiro mito, lembro quando ele foi consertar um vazamento no encanamento era o magayver
Chorei em ler seu texto, não por que sinto a falta dele como você, por que você me descreveu uma pessoa que nunca puder conviver, e percebi que temos algumas coisas em comuns, por acaso este tbm é meu pai, e genética não falha! Mesmo na distância um dia antes, fazendo minha oração senti uma forte vontade de liberar o perdão pela sua ausência como pai, e fiz de todo céu coração e no outro dia veio as notícia que ele não ia sobreviver ele também me ouviu, está tudo bem e vai ficar tudo bem…minha mãe se foi tem 7anos e a melhor forma de honrar os pais são os ensinamentos deixados, fica a dica meu irmão Felipe, sua irmã Perla.