688 mil vidas perdidas para a COVID-19 no Brasil. Entre estes estão meu pai, meu tio e minha avó paterna. Meu tio e meu pai faleceram no ano passado, assunto que já falei diversas vezes aqui no blog e até criei uma categoria só para isso (que você pode conferir clicando aqui). Já minha avó paterna fez sua passagem no início deste ano. Desde então a morte tem pautado os meus pensamentos. Tenho levado esse tópico para a terapia semana após semana já faz alguns meses (Beijo, Ruth!).
Como se não bastasse, minha avó materna que atualmente mora comigo já entrou no cuidado paliativo. Caso alguém não saiba o que isso significa, o cuidado paliativo quer dizer que sua condição de saúde já entrou em um ponto de não retorno. Os esforços médicos deixam de ter o foco em uma cura e passam a ter o foco em dar o melhor conforto possível dentro do quadro clínico do paciente. O objetivo é minimizar o sofrimento do paciente até que sua hora chegue e sua passagem seja feita da forma mais tranquila possível.
Como esse assunto tem me atravessado, comecei a pensar sobre as lembranças de morte que eu tenho. Como já costumo fazer por aqui, resolvi trazer isso para o blog, só pra esvaziar o juízo mesmo.
Avô materno
Minha lembrança mais antiga relacionada à morte. Meu avô, Firmo Martins de Freitas, faleceu em 1994, quando eu tinha apenas 3 anos de idade. Daí você me pergunta, e você lembra de alguma coisa? Eu sei que é estranho, mas a única lembrança que eu tenho dele é justamente ele no caixão no dia do velório. Lembro que ele estava com a boca aberta e isso por algum motivo me marcou o suficiente para eu nunca esquecer. Foi o meu primeiro contato com a morte e é uma das lembranças mais antigas que tenho.
Levi
Eu tinha uns 10 anos mais ou menos quando meu primo por parte de pai, o Levi, faleceu. Foi uma morte bastante traumática, ele foi nadar em uma lagoa mas estava muito bêbado. Em um determinado momento ele mergulhou e não subiu mais. Levi tinha 16 anos. Acho que foi aqui que eu descobri que jovens também morrem e por esse motivo isso me marca até hoje.
Silvio
Silvio era um amigo extraordinário. Aquela figura que você podia ligar para ele de madrugada pedindo ajuda para desentupir uma privada que ele ia na mesma hora já levando as ferramentas. Silvio morreu em um acidente de trabalho. Uma empilhadeira estava erguendo uma carga que era muito acima da sua capacidade, essa é uma prática bastante comum em empresas que trabalham com cargas pesadas, mas extremamente perigosa. Nessas situações, normalmente fica uma pessoa de cada lado ajudando a equilibrar a carga para a empilhadeira não virar. Não precisa raciocinar muito para entender o perigo dessa prática. Pois bem, Silvio estava em um dos lados, a empilhadeira e a carga tombaram para o lado dele.
Seu Raulino
Video games me acompanham desde que eu me entendo como gente. É algo que atravessa tanto a minha história e os meus gostos que eu não faço a menor ideia de que tipo de pessoa eu seria se eu nunca tivesse tido contato com essa mídia. Durante toda a minha infância e adolescência eu frequentei uma locadora do bairro onde nasci e me criei, o Henrique Jorge. Curiosamente essa locadora não tinha nome, quando as pessoas do bairro iam para lá, falávamos apenas que estávamos indo para o seu Raulino. Era a maior locadora do bairro, uma casa inteira que tinha todos os seus cômodos adaptados para isso. Um local que marcou minha história, era um grande ponto de encontro, uma geração inteira foi marcada por esse lugar.
Seu Raulino já era um senhor de cabelo e bigode totalmente brancos quando comecei a andar lá. Um senhor muito simpático mas com acessos da mais pura ignorância e arrogância em alguns momentos. Acho que por conta da idade, ele se permitia ser rabugento quando sentia vontade. Se bem que lidar com praticamente todas as crianças e adolescentes do bairro realmente deveria ser algo de perder o juízo. Mesmo assim, era bastante perceptível que ele adorava o que fazia. Ele às vezes dizia que quando morresse, não queria tristeza, queria ver todo mundo jogando. Eu saí do bairro em 2014, lá para 2017 eu tive curiosidade de saber notícias dele, vasculhei o Facebook até encontrar uma postagem do filho dele do final de 2014 comunicando que o lendário Seu Raulino havia feito sua passagem.
Se a minha história de vida de repente virasse um mito grego, a locadora do seu Raulino seria algum tipo de templo sagrado e o Seu Raulino uma espécie de deus dos videogames.
Véi do apito
Outra figura que marcou não só a minha infância como toda uma geração do Henrique Jorge. Véi do apito era um comerciante que teve seu ponto comercial em vários endereços pelo bairro. A lembrança mais antiga que tenho dele, ele já era bem velho, com uma barba branca enorme e conhecido no bairro inteiro como véi do apito. Eu não faço ideia de onde veio esse nome, na verdade eu não faço ideia sequer do nome verdadeiro dele. Suas mercadorias lembravam muito as mercadorias dos camelôs do centro de Fortaleza. Lá era possível encontrar todo tipo de quinquilharia, minigames daqueles de 9.999 jogos ( dos quais pelo menos metade eram variações de tetris), uma infinidade de bonecos falsificados de todos os desenhos que fazia sucesso na época e todo tipo de fogos de artifício que uma criança jamais deveria por as mãos (seus clientes geralmente tinham menos de 13 anos).
Até onde sei, véi do apito não tinha contato com a família. Todo natal e ano novo, ele virava a noite no seu comércio. Nessas datas a frente da sua loja ficava abarrotada de pessoas, todas desesperadas para comprar qualquer presente de qualidade duvidosa para dar conta de algum amigo secreto indesejado. No final da minha infância e início da adolescência, eu adquiri um gosto bizarro por fogos de artifício, era quase um piromaníaco. No natal e no ano novo eu gastava todo o dinheiro que conseguia no véi do apito. Ele estava sempre lá, não importa a data, às vezes com o portão quase fechado, mas era só chamar que ele abria.
Um belo dia soubemos que o véi do apito havia feito sua passagem. Ele era uma espécie de entidade folclórica no bairro. Tudo que sei sobre ele está aqui neste texto, ou seja, quase nada. Até hoje o cheiro de explosivos é super nostálgico para mim por conta dessa época. Ok, eu admito que sentir nostalgia por explosivos parece muito bizarro, mas era tãããããããããããããão legal.
Ramona
O ano era 2006, eu fazia o primeiro ano do ensino médio e ela fazia o segundo ano. Ramona era lindíssima. Daquelas belezas que são unanimidade, não havia ninguém que não reconhecesse que ela era muito bonita. No final deste ano, quando o ano letivo já tinha acabado, recebi a notícia de que ela havia falecido. Ela estava deitada em uma rede em uma casa de praia, um dos punhos da rede estava preso em uma coluna, por algum motivo, provavelmente uma obra feita de qualquer jeito, a coluna partiu e caiu por cima dela juntamente com parte do teto. Eu nem sei dizer porque isso ficou na minha cabeça, mas o fato é que está aqui até hoje.
Joaquim Neto
Joaquim era um grande amigo na minha adolescência, e já existe um texto em que falo sobre ele aqui no blog (que você pode acessar clicando aqui). Por conta do seu porte físico de filé de borboleta, Joaquim era mais conhecido no bairro como Ossada. Entre os vários problemas que o Ossada enfrentava, havia o alcoolismo. A última lembrança física que eu tenho dele é da gente sentado na área da minha antiga casa no Henrique Jorge, só nós dois, onde ele me narrava o quanto a vida dele era uma merda e não tinha sentido. Passamos um tempo sem nos falar e sem nos ver, e a próxima notícia que eu tive dele foi que ele faleceu de cirrose, aos 18 anos.
Essas são minhas lembranças mais marcantes relacionadas à morte, mas também não deixa de ser uma forma de prestar homenagem a essas pessoas. Eu não costumo fazer isso, mas vou encerrar hoje fazendo o bom e velho Call to Action, se você quiser deixar um comentário sobre o texto ou compartilhar alguma memória relacionada a morte, vou ficar muito feliz em ler (e talvez, quem sabe, isso nos ajude de alguma forma).
Muito bom teu texto. É muito interessante ir acompanhando os pequenos detalhes que tu guardou das pessoas, das vivências, os pequenos detalhes que as pessoas deixam quando se vão são os mais importantes de lembrar, um apelido, um trejeito, uma característica que te marcou, é de alguma forma reconfortante saber que essas pessoas por mais que tenham ido, deixaram um pouco de si no mundo, nas vivências das pessoas que passaram por a vida delas.
Meu primeiro contato com a morte foi quando meu avô materno faleceu. Eu e minha mãe visitavamos ele regularmente no abrigo que ele vivia, toda vez que a gente ia ele guardava 1 ou 2 reais da aposentadoria dele pra mim. Um dia alguém ligou pra minha mãe avisando que ele havia falecido. Ele já era um senhor doente e não foi tão repentino assim. Eu lembro dele no velório, não lembro do rosto dele, mas lembro que o velório durou a madrugada toda, em algum ponto minha mãe e a cunhada dela acharam melhor eu e minha prima irmos pra casa dessa mesma cunhada pra não ficar tanto tempo ali naquele clima. Só lembro que fomos pra lá, jantamos e assistimos um filme. Não deixaram a gente ir no enterro pra não ficar “impressionada” com aquele momento. Enfim, só compartilhando mesmo.
Incrível como os detalhes marcam né? Achei o texto muito sensível, uma linda homenagem 🤍 Meu primeiro contato também foi com três anos e lembro até hoje da vó (na verdade bisavó) Zefinha. Ela era uma senhorinha bem idosa, já vivia acamada quando nasci. O velório foi na sala da casa do meu avô. Espero que ela e a vovó tenham se encontrado em algum lugar 🖤