Carta de amor N° 3

Quantas definições de amor você já viu? Por escrito mesmo, formalmente. É bem provável que você já tenha visto pelo menos uma definição por aí. Mesmo que nunca tenha visto, é quase impossível que você nunca tenha se deparado com o velho dilema, o que é o amor? Eu comecei a pensar sobre isso no início da adolescência, fase que eu acredito que seja normal que essas questões ganhem atenção. Foi nesse período em que eu vi algo mais ou menos próximo de uma definição de amor pela primeira vez. Eu estava no terminal do Antônio Bezerra, quando vi uma blusa preta com uma imagem de um fósforo aceso e a seguinte frase: “Amor é que nem fósforo, só queima enquanto tem pau”. Na minha cabeça de adolescente homem hétero, aquilo fez total sentido. Foi uma epifania. Eu pensei: “É isso! Pau subiu é amor”. De acordo com essa definição, o meu eu adolescente estava amando umas 100 pessoas diferentes por dia. Às vezes nem era uma pessoa. Logo eu percebi que estava amando gente demais e obviamente essa definição não durou muito tempo.

Não é a toa que a palavra amor é um substantivo abstrato. Coisas abstratas são subjetivas. Encontrar definição para coisas subjetivas não é tarefa fácil. Cecília Meireles uma vez disse assim: “Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.” Pode tacar amor aí no lugar de liberdade que funciona do mesmo jeito. No entanto, admitir que não há explicação não exclui o exercício de se tentar explicar, por mais que esse exercício vire só uma masturbação de palavras. Então sigamos.

A próxima definição que me deparei no decorrer da vida foi a trindade grega Eros, Ágape e Philos. Vamo dar uma voltinha por cada um deles.

Ágape

Comumente associada ao amor divino, incondicional e com sacrifícios. Não exige reciprocidade e sua razão de existir está em si mesmo. O simples ato amar já é por si uma fonte de alegria. Por essas razões, ágape também costuma ser associado ao amor materno.

Philos

Costuma ser definido como o amor fraternal ou amor de amizade. Envolve lealdade, camaradagem e aceitação do outro como ele é. Encontra razão de existir na sensação de conforto em saber que há alguém do lado em que se possa confiar.

Eros

Tesão e prazer. Basicamente. É a força primitiva que garante a continuidade da espécie. Eros encontra razão de existir no gozo, não há outra forma de dizer.

Perceberam que cada um desses tipos de amor traz consigo outros conceitos abstratos/subjetivos? Alegria, confiança, prazer e por aí vai. Isso acaba nos levando de volta ao conceito de liberdade da Cecília Meireles. Há ainda o problema de se considerar cada um desses três tipos de forma isolada. Considerando que o amor conjugal depende só de Eros, por exemplo, voltamos a minha primeira definição de amor lá da adolescência. Nossa jornada em busca da definição de amor continua. Sigamos.

Não lembro ao certo quando, mas em algum momento dessa jornada em encontrei um vídeo do Jô Soares que me marcou bastante e mexe comigo até hoje:

Além da beleza e da sabedoria inerente da inocência dessas definições. Esse vídeo me trouxe o esclarecimento de que para se definir amor é preciso ter pólvora para gastar. Não dá para acertar com um único tiro. É preciso bombardear a palavra amor com conceitos e perspectivas diferentes para se chegar em algum lugar. E foi justamente mudando a perspectiva que consegui dar mais alguns passos nessa jornada conceitual. O meu entendimento do que é amor ainda tinha muito pra onde crescer.

Daniel é meu primo, tem a mesma idade que eu e fomos criados muito próximos. O que significa que quando eu comecei a ter consciência de mim mesmo ele já estava lá. Como um irmão gêmeo. Uma vez ele me disse que eu sou a versão hétero dele. É insano como isso faz sentido para mim. A sensação que tenho é que realmente somos um pro outro uma forma diferente de existir de si mesmo. Espero que isso não fique confuso, porque não vejo outra forma de descrever a nossa relação. Lembro de quando ele finalmente criou coragem pra me contar que era gay, que naquela altura já não era nenhuma surpresa pra mim. Estávamos bebendo só eu e ele lá no Banana Mania na Avenida Senador Fernandes Távora. Corriqueiramente chamado por nós de Pipino Doido, só por zoeira mesmo. Acho que na época tínhamos uns 18 anos, não lembro ao certo. Quando ele me contou não fez diferença nenhuma, até porque eu meio que já sabia, só estava esperando ele confirmar. A partir dali eu começaria a ver o mundo através dos seus olhos. Começaria a experimentar o mundo através da lente do mundo gay.

Como a roleta do acaso e da coincidência é uma só e a vida adora brincar com ela. Daniel começou a namorar com uma pessoa que se chama Filipe. O nome só não é igual ao meu por uma única letra. Pra adiantar a conversa e voltarmos ao assunto do título desse texto antes que alguém desista da leitura (se é que já não desistiu). Eu quero voltar pro dia em que o Filipe viajou para o Ciência Sem Fronteiras. Fui com o Daniel deixá-lo no aeroporto. Daniel por muito pouco não morreu naquele dia. Chorava um choro inconsolável. Devastado. Falava várias vezes do medo que sentia de você estar sozinho do outro lado do oceano sem conhecer ninguém. Que não teria ninguém para cuidar. Não havia nada na minha bagagem cultural que me permitisse entender esse amor. Passei muito tempo com esse episódio na cabeça. Lentamente e sem nenhuma catarse, apenas com o amadurecimento natural e lento do meu entendimento é que fui capaz de compreendê-los. Comecei a ver neles dois o que eu acredito ser a única forma possível da tríplice grega fazer algum sentido.

Conviver com o Daniel e com o Filipe me fez chegar até essa “equação”. A dedicação e o zelo incansável sem esperar nada em troca de Ágape, o suporte e o apoio de Philos e a energia sexual de Eros é igual a equilíbrio. Pelo menos se tratando das relações conjugais, esse tripé me parece ser o que garante uma relação duradoura. Importante salientar que em momento algum eu estou falando de felicidade. Não dá pra dizer que esse modelo trará felicidade no amor, mas pelo menos me parece ser o caminho menos incerto para uma relação saudável e duradoura.

Nem sempre uma relação conseguirá equilibrar essas três forças. O mais provável é que cada um desses três elementos assumirá um papel mais importante na vida das pessoas envolvidas na relação de acordo com a fase que a relação está passando.

Esse texto não é só uma reflexão sobre o que é o amor oportunamente publicado no dia dos namorados. É também um registro do meu apego e admiração por esse casalzão da porra que já me ensinou tanto. Por sinal, a última lição foi bem recente e acredito que seja uma ótima forma de encerrar por hoje.

Eu estava no cinema assistindo Bohemian Rhapsody com a Fabrícia. Freddie Mercury passa boa parte do filme tentando esconder a própria sexualidade dele mesmo e o filme praticamente todo escondendo a sexualidade da família. Em uma cena já no finalzinho do filme [SPOILER ALERT!!!], Freddie está com Jim Hutton, a pessoa com quem ele passou mais tempo e viveu seus últimos anos de vida, na casa dos pais. Eu imaginei que esse seria o clímax do filme, Freddie já no auge da sua carreira, já tendo provado ao mundo que ele era o maior rockstar gay da história. Apresentaria Jim como seu namorado/marido e venceria as barreiras da sua família ultra conservadora… Freddie apresenta Jim como seu amigo… Acho que nunca chorei tanto no cinema. Lembrei imediatamente do Daniel e do Filipe, que ainda hoje precisam se apresentar nos eventos da família como amigos. Mesmo os dois já tendo se assumido e serem extremamente bem resolvidos quanto a isso, ainda hoje eles não podem ser um casal na frente da família. Foi inevitável pensar, “Se o maior rockstar gay de todos os tempos não conseguiu, quem é que vai conseguir? Não tem como vencer essa batalha”.

O casal que mais me ensinou sobre amor é diariamente agredido pela nossa sociedade pelo simples fato de amar. Essa batalha não foi feita pra ser vencida. A gente segura na mão uns dos outros, vai caminhando como pode e se ajudando nessa guerra tão desigual. Sobrevivendo na esperança de dias melhores. De qualquer forma, saibam que eu vou estar sempre aqui para o que vocês precisarem. Espero que eu ainda possa aprender muito com vocês e espero de coração que vocês possam ter um dia dos namorados maravilhoso.

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