Carta de amor N° 1

Eu lembro de um dia que eu desci as escadas que davam pro bebedouro do térreo lá no seminário da prainha. Você estava sendo conduzida por uma amiga, estava de costas pro bebedouro, na parte que fica fora da estrutura, a céu aberto. Acho que estava no intervalo das minhas aulas, não lembro ao certo. Eu falei algo como, “Vocês estão só poitando né?”. Você virou apenas a cabeça para mim e sorriu. É inexplicável como a lembrança da sua figura naquele instante é forte na minha cabeça. Você estava de saia, uma blusa de alcinha, os cabelos cacheados enormes e soltos. Sem parar de dançar, sem nem virar o tronco, você olhou para mim e sorriu, sorriu um sorriso maravilhoso. Quando eu lembro de você é exatamente essa a imagem que me vem na minha cabeça. Tá impresso aqui no meu juízo como quando um pingo d’água imprime um furo em uma pedra. Durante muito tempo essa imagem foi para mim uma fonte de agonia, porque essa história não é bonita.

Mesmo tudo aquilo tendo acontecido em um espaço tão pequeno de tempo e de forma tão dolorosa, eu aprendi tanto com você, você me ajudou tanto a evoluir como pessoa, você me fez enxergar tantas coisas, que mesmo que nós não nos falássemos mais eu seria eternamente grato a você. Mas o preço, o preço foi alto, muito alto.

Todos nós temos os nossos sagrados. É bem claro para mim que as suas causas são os seus sagrados e você é implacável com quem mexe nos seus sagrados! E foi exatamente isso que eu fiz… Você pra mim é uma espécie de paladina da sororidade, e olhando pra trás agora, vejo que foi exatamente isso que eu feri em você, eu feri o seu sagrado. Eu acho que se fosse possível ou necessário você escolher entre ficar do meu lado ou ficar do lado dela, você teria ficado do lado dela, acho até que em algum momento você tentou fazer isso. Só não foi assim porque ela não permitiu. Eu gostaria muito que todos que estavam do lado de fora dessa história pudessem ver o que aconteceu dessa maneira, mas eu sei que as pessoas não veem assim.

Com o tempo nos resignamos e ressignificamos as dores e os acontecidos. Algumas vezes pedi a Deus para que ela também pudesse fazer o mesmo. Não sei se aconteceu. Talvez nunca saibamos.

Eu queria tanto poder continuar perto de você. Continuar aprendendo com você. Mas mesmo você tendo me perdoado, você deixa claro que a proximidade acabou, que o que aconteceu deve ser seguramente dissolvido pelo tempo até evaporar e não sobrar mais nada. Com esta carta eu não busco redenção e sei que não há muito o que se fazer. Tenho plena consciência de que diante de tudo isso o meu lugar é calado e de cabeça baixa. Mas eu queria que você se lembrasse de uma coisa.

Toda forma de amor tem seu lugar

One Comment

  1. Excelente a impessoalidade do texto. Excelente também o fato de que, mesmo impessoal, é quase possível imaginar e ver tudo acontecer como se estivesse lá.

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