Amigos de infância, amigos da rua, amigos do colégio, amigos da locadora (de video-games), amigos do bairro e primos amigos. Amigos. Todo mundo já teve pelo menos um tipo desses. Muitas vezes são essas relações que fazem algo valer a pena ou mesmo fazem a vida ser mais suportável. Se você está mais perto dos 30 do que dos 20 como eu, é bem provável que você já não fale mais com a maioria desses amigos, às vezes porque o contato se perdeu, às vezes porque as vidas corridas já não permitem mais tantos encontros, às vezes por questões políticas ou até mesmo um afastamento consciente, intencional e deliberado de alguma ou ambas as partes. É desse último caso que quero falar hoje.
Senhor Z era um amigo de infância, do bairro, da locadora e da escola. Morávamos a um quarteirão de distância. Na verdade as nossas famílias já eram amigas antes de nascermos. Nossa amizade não tem data de início porque somos amigos desde que ele nasceu, por conta dessa amizade entre as famílias. Crescemos juntos, brincamos juntos, jogamos muito vídeo game juntos e descobrimos muitas coisas da vida juntos. Por ser mais velho, acabei começando muitas coisas primeiro, beber, transar, sair pra farrear, entrar na faculdade, trabalhar e essas coisas de crescer. Mas ele sempre estava lá, chegava depois em alguns pontos da vida, mas sempre estava.
As nossas diferenças de classe social sempre foram marcadas, isso ficava bem claro com os joguinhos eletrônicos que tanto amávamos, ele sempre teve video game e eu só pude ter um quando comecei a trabalhar e pagar por um. Mas isso nunca foi motivo de discórdia, muito pelo contrário, tenho lembranças maravilhosas de passar horas na casa dele e de vez em quando virar a noite jogando. Terminamos muitos jogos juntos.
Eu não sei dizer ao certo quando foi o ponto de virada. Acho que foi quando ele fez 18 anos (e eu estava com 20), acho que foi aí que algumas diferenças começaram a ficar mais amargas, inclusive as diferenças econômicas. Senhor Z virou o poster do homem hétero opressor. Branco, olhos azuis, malhado do tipo que não deixa faltar BCAA em casa e frequenta balada heterotop. Tirou a carteira assim que fez 18 anos (eu ainda hoje não tirei a minha) e entrou em uma faculdade cara, bem cara. Mas não é bem esse o ponto que me fez parar de falar com ele de forma deliberada. Me acompanhe no próximo parágrafo.
Nossos caminhos foram se distanciando aos poucos. Fomos nos tornando pessoas totalmente diferentes. Os encontros foram ficando mais esparsos, mas sempre que nos encontrávamos, ele fazia uma série de perguntas que me davam nos nervos. A primeira delas era, “como que está a futura casa?”. Essa casa da pergunta é a minha atual morada, me mudei em 2014. Minha família vem construindo muito lentamente, porque só assim que pobre consegue construir alguma coisa. A casa ainda hoje não está concluída. A segunda pergunta era, “Tá trabalhando? Tá com bolsa? Tá ganhando quanto? Fazendo o que?”. Acho que essa não precisa de muita explicação do porque isso é irritante. Aí geralmente vinha seguido da pergunta “e os projetos pessoais? Tá fazendo algum jogo?”. O senhor Z acha que a minha graduação se resumia a fazer jogos (fiz Sistemas e Mídias Digitais na UFC). Vocês perceberam um padrão nessas perguntas? Não? Então, o senhor Z estava cada vez mais interessado em saber se eu estava ascendendo socialmente.
Pois é, senhor Z tinha muita admiração por mim na infância, eu era como um irmão mais velho pra ele, e ele como um irmão mais novo pra mim. Isso ficava especialmente agravado pelo fato dele ser filho único e de pais separados. Só que quando chegou a hora, os privilégios respectivos de cada classe falaram mais alto. Senhor Z começaria a juventude com uma série de coisas que eu ainda iria lutar muito pra conseguir (e ainda hoje luto). As amizades dele também mudaram, ficou muito próximo de figuras que vira e mexe gastam R$ 500,00 em uma noite. Não sei se ele percebeu que ele estava anos luz distante de minha realidade, não sei se ele percebeu que ele e os novos amigos tinham simplesmente 0 de empatia quanto a essas diferenças. Aliás, acho que chegamos ao ponto chave, o meu deliberado afastamento. Diante desse cenário, me afastar se tornou uma questão de alívio. Me dava agonia pensar em ver o senhor Z e saber o que eu iria encontrar.
A era digital meio que força a termos uma conexão permanente com tudo e com todos. Isso nem sempre é saudável. Eu desenvolvi uma técnica para decidir se eu ainda mantenho contato com essas amizades que são mantidas só pela nostalgia de um tempo que não volta mais. Eu me faço a seguinte pergunta, se eu conhecesse essa pessoa hoje, nós nos tornaríamos amigos? Ficaríamos próximos? Se a resposta for não, significa que não vale a pena fazer a manutenção dessa “amizade”. A medida que avançamos na vida adulta o tempo vai se tornando cada vez mais valioso, e gastar o meu tempo com uma amizade que só serve pra atazanar o meu juízo é algo que definitivamente não me interessa. O senhor Z é uma exemplo muito claro disso, alguém que eu não faço questão que permaneça no meu círculo de amigos, se nos conhecêssemos hoje, seríamos no máximo colegas de trabalho (e só se realmente tivéssemos que trabalhar juntos).
“É claro que somos as mesmas pessoas
Mas pare e perceba como o seu dia a dia mudou
Mudaram os horários, hábitos, lugares
Inclusive as pessoas ao redor
São outros rostos, outras vozes
Interagindo e modificando você
E aí surgem novos valores,
Vindos de outras vontades,
Alguns caindo por terra,
Pra outros poderem crescer
Caem um, dois, três, caem quatro
A terra girando não se pode parar
Caem um, dois, três, caem quatro
A terra girando não se pode parar
Outras situações em outras circunstâncias,
Entre uma e outra as vezes se veem os mesmos defeitos
Todas aquelas marcas do jeito de cada um
Alguns ainda caem por terra,
Pra outros poderem crescer
Caem um, dois, três, caem quatro
A terra girando não se pode parar”
(Pitty – Anacrônico)