O censo demográfico ou recenseamento demográfico é um estudo estatístico referente a uma população que possibilita o recolhimento de várias informações, tais como o número de homens, mulheres, crianças e idosos, e onde e como vivem as pessoas. No Brasil esse estudo é realizado de dez em dez anos, sendo o último realizado em 2010, no qual eu tive a oportunidade de trabalhar em Fortaleza – CE. É sobre isso que eu quero falar hoje.
O censo demográfico brasileiro é organizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. Entrei lá através de um concurso para Agente Censitário Supervisor, cargo temporário que visava atender as demandas do censo. Não preciso nem dizer que para contar o país inteiro é preciso um verdadeiro exército de pessoas, muitos contratos temporários são feitos por conta disso.
Fui alocado para o Grande Bom Jardim, localidade tradicionalmente conhecida em Fortaleza pelo alto índice de vulnerabilidade e todos os problemas sociais que isso acompanha. Uma sala na E.E.F.M Dona Júlia Alves Pessoa, que fica na Avenida Osório de Paiva, foi adaptada para receber os Supervisores; no dia 15 de março de 2010 nós começamos as atividades. O censo mesmo só aconteceria no segundo semestre do ano e seria feito pelos agentes censitários (que também eram temporários), até lá o trabalho dos supervisores era “preparar” o terreno para a chegada dos agentes. É aqui que a brincadeira começa. Cada supervisor recebeu cerca de 11 ou 12 setores, não lembro ao certo (afinal já fazem 9 anos). Lembro que um setor tinha mais ou menos uns 8 quarteirões, mas isso variava muito, um condomínio grande por exemplo acabava sendo um único setor. Dos meus setores, pelo menos metade deles eram de pessoas que podemos considerar abaixo da linha da pobreza, falarei sobre esse conceito que dá título ao texto mais na frente. Um desses setores era justamente um condomínio, o Condomínio Residencial Cônego de Castro.
Um local de vulnerabilidade que é um condomínio? Pois é, em Fortaleza praticamente não existem favelas verticais, mas o Condomínio Cônego de Castro é uma exceção. Inicialmente era um projeto de habitação da Caixa Econômica, construído na Avenida Cônego de Castro, mas que antes da sua conclusão foi invadido. São 15 blocos, cada bloco com 4 andares e cada andar com 4 apartamentos. O resultado são 240 apartamentos, na época a maioria sem reboco, com instalação elétrica irregular (leia-se gato) e alguns sem nem mesmo encanação. Dava para perceber que a construção dos blocos aconteceu no sentido da avenida para o interior, pois os que ficavam de frente para a avenida eram mais bem acabados. Entrando no condomínio, os blocos iam ficando cada vez mais “crus” e os últimos nitidamente não receberam nenhum acabamento.
Eu realmente vi de tudo nesse condomínio e nesses apartamentos. Os carteiros eram orientados a não entrarem nos blocos, porque uma vez pegaram o pacote de cartas, jogaram em um canal que passa do lado do condomínio e espancaram o carteiro. Não levaram nada dele, fizeram por pura maldade. Desde então as correspondências eram entregues em uma associação de moradores do condomínio que ficava bem na frente (e que hoje é uma igreja evangélica), a associação se responsabilizava por entregar o que quer que fosse.
Tráfico de drogas e prostituição eram rotina por lá, especialmente nos blocos mais afastados da avenida. Lembro de um apartamento no qual moravam uma mulher e a sua filha que tinha problemas mentais. Os moradores diziam que a mulher era ex garota de programa e que agora ela prostituía a filha. Lembro de um casal que tinha uns 8 filhos (não lembro ao certo) que nunca tinham pisado em uma escola e consequentemente eram analfabetos. O pai, que também era analfabeto, trabalhava na construção civil e assim que os filhos cresciam o suficiente pra conseguir levantar um balde cheio de qualquer coisa, iam ajudar o pai no trabalho. Era uma lógica simples, quanto mais mãos, mais renda, por mais ínfima que fosse.
Quando os agente censitários iam de apartamento em apartamento, às vezes era impossível não ficar com nó na garganta. Isso porque o que eles perguntavam era justamente os dados sócio econômicos, o que expunha mais ainda a triste realidade de todos ali.
Trabalhar no censo daquele ano foi algo que me possibilitou aprender uma série de coisas que eu não sei como aprenderia de outra forma. Eu lembro que sempre ouvia no jornal falarem sobre pessoas abaixo da linha da pobreza, na época esse termo para mim era só uma expressão vaga, eu não sabia de fato o que significava. A, B, C, D e E, são letras comumente usadas para determinar classes socioeconômicas com base na renda per capita, sendo A os mais ricos, E os mais pobres e C a famigerada classe média. Onde estão as pessoas abaixo da linha da pobreza? Não estão. A linha da pobreza é a classe E, são pessoas que ganham pouco, mas possuem alguma renda. Abaixo dela estão os miseráveis, no sentido de viver na miséria. São pessoas que muitas vezes não tem renda alguma. Vivem de doação e/ou bicos.
Eu nasci pobre, quem acompanha os meus textos já entendeu isso, e quando nasci minha família estava na classe E. Hoje em dia estamos na classe D. Nunca passamos fome. Até eu trabalhar no censo demográfico de 2010, eu não sabia o que era condição de vulnerabilidade, eu não sabia o que era aquele termo vago que eu ouvia na tv sobre pessoas abaixo da linha da pobreza. Resumindo, eu nunca tinha visto a fome de perto. Mais ou menos no mês de setembro de 2010 eu já estava completamente envolvido com as comunidades que ficaram sob minha responsabilidade. Tinha contato com vários líderes comunitários (impressionante como surgem lideranças nesses lugares), entrava e saia de ruas e becos que pareciam ter saído direto do filme Cidade de Deus, sem nenhum problema. Comovido com tudo que via, falei com algumas dessas lideranças para organizar uma arrecadação de alimentos pro Natal. Curiosamente, todos disseram que essa era uma péssima ideia, porque todas as vezes que acontecia distribuição de alimentos naquelas bandas, as pessoas saiam no tapa por comida. Acabei organizando uma arrecadação de brinquedos que foram distribuídos no dia das crianças. Nenhuma criança saiu no tapa. Lembro também da recomendação de sair assim que visse qualquer movimento policial, porque a polícia não entra nesses lugares a esmo, é arriscado demais. Geralmente quando eles entram já é pra “resolver” alguma situação específica.
Tem várias outras histórias que eu poderia contar sobre o período que passei no IBGE. Fica para outro texto ou mesa de bar caso alguém queira me convidar para conversar mais. Sem dúvidas o que eu ganhei de empatia nesse período é inenarrável. Não há forma melhor de entender a dor do outro do que sentindo a própria dor.
Só quem viveu nas quebradas sabe porque não se pode dormir com a cabeça virada pra porta. Só quem viu a morte de perto sabe o horror que é encontrar um corpo cujo o sangue ainda não secou.
E muitas vezes esquecemos de agradecer por nossa cama quentinha, nossas refeições mesmo simples, nossa casa seja como for e principalmente pela nossa família.