5 meses sem ele

Eu não queria escrever mais esse texto sobre o meu pai, mas sinto que ainda tenho o que esvaziar em relação ao que venho sentindo, então aqui estamos. 

Aqui em casa, por ser grande, vários eventos da família são realizados aqui. No mês passado, especificamente no dia 14 de outubro, a mãe pediu para ligar o freezer, por conta do aniversário do Matheus, filho do Jarbas, que se aproximava. Esse é um ritual de quando tem um evento festivo próximo aqui em casa, liga-se o freezer para ir armazenando as coisas da festa que vão chegando e ficando prontas. A última vez que o freezer tinha sido ligado foi no aniversário da Letícia, filha da minha prima Cibele, pouco antes do Neto morrer. O simples ato de ligar o freezer foi esquisitíssimo para mim. É muito estranho retomar a vida social da casa sem o pai aqui. Parece errado, sei lá.

Na madrugada desse mesmo dia que a mãe pediu para eu ligar o freezer, do dia 14 para o dia 15 de outubro, eu sonhei que o pai estava vivo. Não tem nada no universo que prepare um ser humano para lidar com o sonho com uma pessoa amada que já se foi. O sonho era muito real e quando acordei foi horrível, quase tão ruim quanto o dia em que eu soube que o quadro do pai era irreversível.

No dia do aniversário do Matheus achei melhor não estar em casa (mas deixei o presente). Comentei com o meu primo Daniel (irmão da Cibele) sobre o freezer. Ele falou que viver sempre parece injusto quando a gente perde alguém que a gente ama. Acho que foi isso que senti. Na verdade talvez seja isso que eu venho sentindo.

O aniversário da Letícia esse ano foi o último evento em que todos estavam aqui. Meu tio e o meu pai ainda não tinham falecido e a família ainda não tinha rachado (assunto que não vale a pena trazer aqui). Esse foi um dia bem feliz. Talvez o último dia realmente feliz que tive esse ano. 

Recentemente foi o aniversário da minha irmã, Vitória. O freezer foi ligado mais uma vez. Dessa vez eu fiquei em casa, mas ainda achando tudo muito estranho. A falta que o pai faz nos eventos é muito latente. Andava pela casa no dia como se quisesse encontrá-lo. Para qualquer lado que eu olhasse eu via o que ele estaria fazendo na festa se estivesse aqui.

Dentre os vários buracos que o meu pai deixou. Tem um bastante curioso e peculiar. É o buraco gastronômico. Nas festas aqui de casa, era ele que fazia os salgadinhos, que eram sempre divinos. Agora os eventos aqui de casa tem salgadinhos comprados. Ainda não me acostumei com isso. Salgadinhos comprados de outro lugar? Onde já se viu? Parece um grande absurdo para mim.

Tem vários pratos que o meu pai fazia que agora ficaram na memória. Feijoada, panelada, estrogonofe de carne, moqueca de arraia e por aí vai. Sabores que eu nunca mais vou sentir. Talvez eu até encontre por aí alguém que faça esses pratos tão bem quanto ele fazia, mas eu desconfio que os salgadinhos é impossível encontrar igual.

Ele tinha um estranho feitiche por comidas exóticas. Testículo de boi, avoante, rabo de jacaré e até fussura. A fussura, no Nordeste brasileiro, é uma iguaria preparada com o crânio do bode cozido com a mistura de tripas, sangue e miolos. O momento do preparo é realmente muito peculiar, lembrando muito um ritual satânico. Esse prato é bastante conhecido no interior dos estados do nordeste, mas em Fortaleza, a capital onde vivo, vi poucas pessoas falando desse prato. Já faz muito tempo que vi o pai fazendo fussura, foi em um local chamado Poço da tábua, distrito de Itapiúna, minha memória não é muito nítida, mas acho que quando ele fez foi só com o cérebro do bode e sangue, sem as tripas. Lembro que tinha gosto de sarrabulho, outra iguaria que eu não sou muito chegado, então só provei a fussura e deixei de lado. Os bebuns que acompanharam o pai (cena que era bastante comum) nessa empreitada do preparo da fussura se deleitaram. Lembro também que testículo de boi tem gosto de fígado, que eu também não sou muito chegado. Todos os amigos do pai já conheciam esse feitiche por pratos exóticos e muitas vezes traziam de longe coisas estranhas para ele preparar, tudo sempre regado com muita cachaça.

Outra coisa que só vi ele fazendo era bruaca de milho, que ele costumava chamar de bolinho de milho. Esses bolinhos de milho são a cara da minha infância. A última coisa que falei com ele no zap foi: “Pai, faz o molho de salsicha”. Esse molho de salsicha era mais um espetáculo do repertório de cozinha dele que já era recheado de grandes sucessos. Infelizmente vários desses sabores eu sei que ele levou para o túmulo junto com ele.

O Natal e o Réveillon se aproximam, mais datas que precisamos aprender a viver sem ele por perto. O que me lembra também de outra tradição que precisaremos resignificar. Era sempre o pai que preparava o peru, às vezes além do peru, ele fazia uma galinha assada inteira no forno. Rituais que agora ficaram na memória, junto com todo o repertório de sabores que ele sempre oferecia de forma muito empolgada, acompanhado de uma dose de cana.

Da esquerda para a direita: Minha mãe (Dona Nádia), meu pai (Seu Nazareno ou Naza) e minha irmã mais nova (Renata).

6 Comments

  1. Li seu texto almoçando. Confesso que ao descrever a fissura me embrulhou o estômago 😂. Essa dor da perda nunca vai sumir… Mas espero que diminua o quanto antes. Meus sentimentos Felipe. Adoro vc.

  2. Realmente a presença dele era muito marcante, em especial em eventos festivos. Deixou saudades em todos nós. Muito tocante e de muita sensibilidade a sua maneira de retratar o luto e as memórias de seu pai.

  3. Me arrepiei do começo ao fim.. já se passaram 5 meses.. que dor, que tristeza.
    A memória é uma coisa complicada.. consegui sentir cada saudade sua com cada prato que seu pai preparava..
    Eu tive a honra de provar o molho de salsicha (que por sinal é DIVINO).
    Tive a honra de merendar com vocês na mesa e ver a simpatia que era o seu pai.
    Não imagino a dor que você carrega mas saiba que estou carregando junto. Ler suas memórias me fazem estar mais perto de ti, mesmo que longe.
    Sinta-se abraçado meu bem.

  4. “Ele falou que viver sempre parece injusto quando a gente perde alguém que a gente ama.” Essa frase resume muito o sentimento que fica quando alguém que gostamos se vai…forças.

  5. Vivi cada palavra tua, imaginando tua dor. Meu desejo: que essa dor passe, ficando só a saudade! Deus abençoe você, meu sobrinho querido!

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